Nos últimos anos, a disseminação da inteligência artificial (“IA”) na sociedade, na economia e na vida quotidiana tem-se revelado tão transformadora quanto a mecanização, a eletrificação ou a informatização – daí que muitos concluam que estamos a entrar em mais um momento sem paralelo na História.
O mundo das relações laborais não tem ficado alheio a esta transformação. O uso de IA na gestão das relações laborais – desde a fase de recrutamento à cessação do contrato de trabalho – é hoje uma realidade que tende a intensificar-se.
Não obstante os benefícios alcançados com o uso de algoritmos e de IA em matéria de gestão de recursos humanos, desde logo com a simplificação de procedimentos, que se tornaram mais céleres e alegadamente menos subjetivos, o uso de IA apresenta igualmente inúmeras dificuldades práticas para as organizações, tendo em consideração os riscos que inevitavelmente comporta, especialmente no que respeita à opacidade dos sistemas.
De acordo com o Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que cria regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial, os “sistemas de IA concebidos para serem utilizados na tomada de decisões que afetem os termos das relações de trabalho, a promoção ou a cessação das relações contratuais de trabalho, na atribuição de tarefas com base em comportamentos individuais, traços ou características pessoais, ou no controlo e avaliação do desempenho e da conduta de pessoas que são partes nessas relações” são classificados como sendo sistemas de IA de risco elevado, o que evidencia os cuidados a serem observados na sua utilização.
No Código do Trabalho, o uso de algoritmos e de IA foi regulado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, tendo ficado previsto que o direito à igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho não pode ser prejudicado pela tomada de decisões baseadas em algoritmos ou noutros sistemas de IA. Também os deveres de informação a prestar pelos empregadores aos trabalhadores e às estruturas representativas foram adensados, tendo sido introduzida a necessidade de ser prestada informação (e de serem consultados os delegados sindicais) sobre os parâmetros, os critérios, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho.
Focando o contexto da cessação do contrato de trabalho, tem-se assistido, a nível global, a uma “algoritmização” do processo de seleção dos trabalhadores a serem despedidos.
Na literatura especializada, abundam exemplos, sobretudo originários dos Estados Unidos, de utilização de algoritmos nos processos de despedimento. A esse respeito, tem-se destacado o caso da gigante de vendas online que, mediante o uso de um algoritmo padronizado – que ignorava as variáveis aplicáveis a cada trabalhador –, media o tempo de execução de tarefas dos trabalhadores e despedia aqueles que o algoritmo ditava serem mais lentos do que a média, o que frequentemente visava trabalhadoras grávidas.
Em Portugal, foi noticiado com destaque um processo de despedimento coletivo ocorrido em 2021 numa companhia de aviação com recurso a algoritmos. Com o apoio de uma consultora, foi desenvolvido pela companhia de aviação um algoritmo para selecionar os trabalhadores a despedir no âmbito do referido processo, o qual se baseava num conjunto de critérios de seleção, entre outros, o absentismo, a senioridade, as habilitações e o custo dos trabalhadores. Na altura, os sindicatos acusaram a empresa de recorrer a um método discricionário, enquanto esta última assegurava que o algoritmo utilizava critérios objetivos na seleção dos trabalhadores, o que acabou por gerar um dissenso na legalidade dos despedimentos que apenas foi dirimido judicialmente.
O Tribunal da Relação de Lisboa acabou por considerar que “tais critérios, pelo modo como se mostram concebidos ou pelo tipo de variáveis (desconhecidas) em que assentam, não permitem ao trabalhador saber porque lhe foi atribuída a classificação referida pela Requerida e que implicou a sua inclusão no despedimento coletivo” e que “(…) os critérios que escolheu para selecionar os trabalhadores a despedir não estão concretizados” pois “(…) pese embora a Requerida tenha enunciado os critérios e os fatores de ponderação a ter em conta – fê-lo em termos puramente genéricos e abstratos – não permitindo ao Requerente, com precisão e clareza, saber, em concreto, como se chegou à posição (classificação) 11 que lhe foi atribuída e que implicou a sua escolha para ser despedido”.
Em suma, entendeu o Tribunal que estava em causa a (falta de) transparência do algoritmo aplicado pela empresa no processo de despedimento coletivo. Com efeito, resulta do artigo 360.º do Código do Trabalho que o empregador que pretenda proceder a um despedimento coletivo tem de comunicar essa intenção, por escrito, devendo essa comunicação obrigatoriamente conter determinadas informações, como sejam “os critérios para seleção dos trabalhadores a despedir”, os quais, no âmbito de um despedimento coletivo, não se encontram determinados e tipificados na lei. Contudo, os critérios utilizados para selecionar os trabalhadores que integram os processos de despedimento coletivo têm de permitir aos visados identificarem claramente o motivo que conduziu à sua seleção, devendo também estar relacionados com os motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos que fundamentaram o recurso à figura do despedimento coletivo.
A utilização de algoritmos e de sistemas de IA no processo de seleção dos trabalhadores a serem despedidos no âmbito de um despedimento coletivo deve assegurar que são cumpridos não só os requisitos legais laborais do despedimento coletivo acima mencionados, como também o normativo de dados pessoais referentes às decisões individuais automatizadas.
Em rigor, a concatenação das diferentes fontes normativas sobre a matéria e extensão da intervenção dos sistemas de IA no despedimento pode determinar diferentes soluções sobre a legalidade do despedimento ao abrigo do enquadramento legal nacional.
Face ao exposto, o recurso ao uso de sistemas de IA nas situações de despedimento, sendo uma tendência incontornável, deve, pelas implicações técnico-jurídicas que apresenta, ser devidamente ponderado de modo a assegurar que a legalidade do despedimento não é colocada em crise.