A Proposta do OE para 2021 vem dissipar quaisquer dúvidas ainda existentes sobre a passagem de um modelo clássico de Estado Fiscal para um verdadeiro Estado Parafiscal.

Com a manutenção das contribuições extraordinárias de âmbito setorial implementadas ao longo da última década, bem como do adicional de solidariedade sobre o setor bancário criado pelo OE Suplementar para 2020, a Proposta do OE revela a intenção de proceder à normalização dos respetivos regimes, todos eles legitimados por contextos extraordinários e, como tal, necessariamente transitórios.

Nesse sentido, ao contrário do que tem sido afirmado sobre a intenção de reduzir a litigância em torno desta tipologia de contribuições, antecipa-se que esta irá aumentar significativamente, até que o Tribunal Constitucional esclareça, de forma definitiva, os limites impostos à criação e à sucessiva prorrogação de tributos que, pela sua própria natureza e circunstância, teriam vigência limitada.

 

Contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE)

Tal como já sucedeu nos anos anteriores, a Proposta do OE procede à prorrogação do regime da CESE para o ano de 2021, não se denotando qualquer alteração substantiva.

No entanto, a Proposta do OE prescreve que o Governo avaliará a alteração das regras do regime da CESE, através:

a)Da alteração das regras de incidência; e/ou
b)Da redução do valor das taxas aplicáveis.

Como alicerces desta avaliação do Governo, está previsto na Proposta do OE o seguinte:

a)A redução sustentada da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN); e
b)A concretização de formas alternativas de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético que, desde a criação do respetivo regime, continuam claramente por identificar.

Não estando em causa uma autorização legislativa – ao contrário, por exemplo, do que sucedeu na Lei do OE para 2020 – esta Proposta do OE parece consagrar esta avaliação em termos meramente programáticos, não se antecipando, à luz da experiência anterior, que daí resultem alterações muito significativas ao regime da CESE. 

Em face deste enquadramento, e da aparente intenção do Governo de “estabilizar” o regime de uma contribuição que é, por definição, extraordinária, antecipa-se que o contencioso em torno do regime da CESE continue a aumentar, em particular com o surgimento de novas abordagens por parte dos sujeitos passivos que exijam,  perante os tribunais, uma ponderação global sobre os  quadros de conformidade legal e constitucional deste tributo.

 

Contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS)

A Proposta do OE prevê igualmente a manutenção da contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do SNS, criada pela Lei do OE 2020.

No entanto, com a Proposta do OE, o regime desta contribuição sofre um conjunto de alterações e aditamentos, como se segue:


Incidência objetiva

a)A base de incidência da contribuição passa a estar parametrizada pelo valor total da faturação trimestral dos fornecimentos de dispositivos médicos.

Trata-se de uma alteração que parece repousar numa intenção de clarificar um aspeto que não se encontrava especialmente claro ao nível do regime criado pela Lei do OE 2020, que parecia apontar para a consideração do valor total anual das referidas aquisições.

b)Passa a ser consagrada a possibilidade de dedução das despesas com investigação e desenvolvimento, que deverá ser efetuada em cada declaração do sujeito passivo.

No entanto, a referida dedução apenas se aplica em relação às despesas de investigação e desenvolvimento realizadas em território nacional, devidas e pagas a contribuintes portugueses.

Trata-se de uma opção que, podendo ter subjacente uma intenção de induzir a procura por investigação e desenvolvimento de base exclusivamente nacional, não deixa de suscitar algumas dúvidas quanto à respetiva conformidade com o Direito da União Europeia.


Taxas

Mantiveram-se as taxas já aplicáveis, tendo-se apenas especificado o valor base em função do qual a taxa é estabelecida, sendo este o valor total anual da faturação dos fornecimentos às entidades do SNS no ano anterior. Contudo, a referida taxa poderá ser corrigida, caso os valores totais definitivos da faturação referentes ao ano a que se reporta a contribuição correspondam a uma taxa diferente da utilizada provisoriamente, originando a respetiva regularização, que deverá constar de declaração autónoma a apresentar no mês de abril do ano seguinte a que respeita.

 

Estrutura de liquidação

a)Prevê-se que a contribuição seja liquidada pelo próprio sujeito passivo, aludindo-se agora à existência de declaração de modelo oficial, a aprovar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, que deve ser enviada por transmissão eletrónica de dados durante o mês seguinte ao período a que respeita a contribuição.
b)Foi aditado ao regime da contribuição um novo artigo que prevê, no essencial, que a taxa pode sofrer correções em função dos valores provisórios e definitivos de faturação.
c)Resulta igualmente do referido artigo que será celebrado um protocolo de colaboração entre a autoridade tributária, a ACSS, I.P. e o INFARMED, I.P., com o intuito de obter a informação necessária e relevante para efeitos de aplicação das disposições do regime que criou esta contribuição.
d)Prevê-se a regulamentação, por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, de aspetos relativos à base de incidência, taxas aplicáveis, bem como as regras de liquidação, de cobrança e de pagamento da contribuição.
e)Para este último propósito, serão ainda ouvidos a ACSS, I.P. e o INFARMED, I.P.


Integração de receita no Orçamento do SNS

A Proposta do OE prevê ainda que a receita obtida com este tributo, referente ao ano de 2020, seja automaticamente integrada no orçamento do SNS, constituindo-se como receita própria deste último subsetor, sendo gerido pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P.

 

Contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica

Propõe-se a manutenção da contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica para o ano de 2021, sem qualquer alteração ao respetivo regime.

 

Contribuição sobre o setor bancário

A Proposta do OE prevê novamente a manutenção da contribuição sobre o setor bancário para o ano de 2021, sem qualquer alteração ao respetivo regime.

 

Adicional de solidariedade sobre o setor bancário

A Proposta do OE prevê a manutenção deste adicional de solidariedade sobre o setor bancário, que não constou da Lei do OE 2020, tendo sido criado pelo OE Suplementar de 2020, ancorado em duas finalidades distintas:

i.O reforço do financiamento do sistema de segurança social, em especial atendendo aos custos da resposta  pública associada ao vírus SARS-CoV-2 e ao evento infecioso associado (COVID-19); e
ii.A compensação da despesa fiscal gerada pela isenção de IVA aplicável à generalidade das operações financeiras e, por esta via, aproximando a carga fiscal do setor bancário à de outros setores que não beneficiam desta isenção.

No entanto, se, sob uma perspetiva meramente formal, estamos, de facto, perante um adicional, a verdade é que as características do tributo em causa suscitam amplas dúvidas quanto à sua real natureza jurídico-tributária, ao que acresce o significativo desvio, ao nível de vários aspetos de regime, face a outros tributos que, no contexto europeu, foram consagrados com o intuito de nivelar a despesa fiscal associada às isenções de IVA.

Salienta-se, de entre outros, o facto de onerar apenas um só setor de atividade e de, pese embora vinculado a pressupostos e finalidades totalmente distintas, replicar os regimes de incidência subjetiva e objetiva da contribuição sobre o setor bancário. 

Trata-se seguramente de um tributo cuja manutenção ao longo do ano de 2021 suscitará uma nova fonte de litigância entre a autoridade tributária e as entidades do setor bancário.

 

Contribuição para o audiovisual

A Proposta do OE prevê a manutenção dos valores mensais da contribuição para o audiovisual para o ano de 2021.